Durante os preparativos do AmadoraBD 2015, quando me perguntaram qual seria a pessoa que eu gostaria de apontar para escrever o texto sobre a minha exposição, decidi optar por uma via diferente da usual. Haveria certamente um grupo de jornalistas meus conhecidos e outras pessoas ligadas à BD que estariam aptas para o trabalho. No entanto, acabei por convidar alguém que acompanha o meu percurso desde os primeiros esboços do primeiro argumento. Alguém com quem partilho a vida, que me conhece, a mim e ao que tenho feito, como ninguém. Fica o texto da Sofia Mota para o catálogo do festival, ainda por editar.
Só mais uma ideia duvidosa.
Começo por dizer que aceitar o convite para escrever este
texto talvez tenha sido uma das decisões mais disparatadas que já tomei. Para
quem procura uma leitura com alguma profundidade e conteúdo e, a bem dizer,
qualquer interesse no que à banda desenhada diz respeito, o mais sensato será
passar directamente para o texto seguinte.
Quando o André me abordou sobre o assunto, e tudo não passava
de uma intenção, abstracta e distante, percebi a razão da escolha...
"Alguém mais próximo do autor, neste caso a sua mulher, que não pertence
ao círculo da BD e que pode partilhar algo mais pessoal, diferente do
habitual". OK, achei que fazia sentido. Porque não?
Mas agora, em cima do acontecimento, sem saber bem o que
escrever e com umas quantas folhas em branco por preencher, isto já não me
parece tão boa ideia.
O que talvez até seja adequado. Ideias duvidosas, com o
André, são umas atrás das outras.
Felizmente, algumas acabam por se transformar em algo bom.
O que nos leva a Hawk.
A premissa para estas páginas foi um contratempo real que se passou com um
amigo que, como o Vicente, se viu forçado a passar um fim-de-semana com um
falcão que lhe irrompeu pela casa adentro.
Porém, à parte deste rastilho de inspiração, as personagens da
história expõem algo de profundamente pessoal, familiar e autobiográfico. Experiências
não somente contadas, mas sentidas ou
vividas, na primeira pessoa. Mas
provavelmente não é preciso viver com o André para perceber isso. Tal como em
quase tudo o que escreve, ele aborda aqui algumas das suas próprias inquietações
e consumições, vivendo-as através das suas personagens, e assim procurando um
sentido para elas.
Neste caso, através do desenho do Osvaldo Medina e cor da
Inês Falcão Ferreira, leva-nos a acompanhar este Vicente, com todas as suas
fobias paralisantes e ansiedade crónica. Explora a dor da perda e a solidão, as
aflições da mudança. Põe-nos a pensar em como "o que faz a vida importante são pessoas e momentos que se vão perder
para sempre". No fundo, uma história bem disposta.
Com o selo da Kingpin Books, e edição de Mário Freitas, Hawk tem um significado especial porque foi
a primeira obra de maior fôlego a ser lançada em nome próprio.
Até lá, ao longo de anos de dedicação, assisti de perto a um
crescendo de pequenos marcos e conquistas na sua busca pela oportunidade de
poder contar histórias. Que assumem várias formas e feitios mas são sempre,
sempre uma parte de quem ele é.
Obviamente, não sou uma académica de BD, nem tão pouco me
atrevo a considerar-me uma fã. É que, ao acompanhar o André a encontros do
"meio", já fui involuntariamente vista como tal e, ao que parece,
isso significa ser abalroada por ininterrupta e, para mim, absolutamente
incompreensível verborreia bedéfila. São sacríficios que se fazem por amor.
Dizem.
Este meio da banda desenhada apaixonou-o desde cedo mas o
percurso como argumentista começou a ganhar forma no último ano da faculdade, quando
se viu com apenas duas disciplinas para fazer e, portanto, muito tempo livre; resultado
da brilhante ideia de ter chumbado a uma única cadeira em todo o curso... que
foi só a cadeira nuclear do 1º ano.
Dedicou-se então a escrever as suas primeiras amostras de
argumento, enquanto dirigia o núcleo de banda desenhada da faculdade. Julgo que mais ou menos por essa altura
começaram também as nossas incursões pelo país, fazendo várias centenas de
quilómetros para ver, a um canto mal iluminado, numa exposição deserta de uma
qualquer cidade do interior, duas pranchas de argumento seu. Quiçá um primeiro
e terceiro lugar num concurso com três participações. A verdade é que estas viagens
serviam mais como pretexto para passarmos uns fins-de-semana diferentes, só os
dois, conhecer novos recantos do país mas, ainda assim, fico satisfeita por
poder testemunhar uma evolução até aos dias de hoje. Os eventos tornaram-se um
pouco mais concorridos, algumas exposições foram já em nome próprio e, em vez
de participar em concursos, começou a fazer livros.
No entretanto, os projectos foram-se sucedendo a um ritmo
incessante. Desde a participação e co-edição em vários números da publicação Zona, ao desafio mensal como editor e
argumentista de BD na revista Cais, à escrita de Volta, Tiras do Baralho, e
o lançamento da Ave Rara com a série Living
Will e agora Gentleman, entre
outras tantas pequenas publicações e vários argumentos que não chegaram
(ainda?) a ver a luz do dia, grande parte do seu tempo é consumido por BD, libertando-me
para consecutivos serões de trash TV.
Alguém tem de equilibrar a produtividade lá de casa.
Uma etapa determinante neste percurso foi a integração no The
Lisbon Studio. Sem qualquer ocupação profissional fixa, decide passar os dias a
"trabalhar", disse ele, junto de uma trupe de artistas, ilustradores e
afins. Outra das suas ideias. Que, a bem da verdade, se reflectiu num argumentista
de BD mais motivado e criterioso, inspirado diariamente pelos vários autores
residentes, e restantes amizades que foi formando pelo meio.
Quem conhece o André, tanto pessoal como profissionalmente,
sabe como ele consegue ser multifacetado, trocar de "chapéu" e
reinventar-se, não se regendo por quaisquer falsas pretensões de coerência. Compreensivelmente,
não há área da sua vida onde esta recusa de auto-limitações seja mais óbvia do
que no seu percurso como argumentista que, digamos sem medo, acaba por roçar um
pouco a esquizofrenia.
De facto, até este ponto, acho que a sua única constante tem
sido mesmo o esforço diário que dedica ao simples sonho de poder partilhar as
suas histórias, de preferência em banda desenhada, com o máximo de pessoas interessadas.
Fá-lo por gosto e opção, é certo, mas com uma disciplina e uma perserverança
difíceis de encontrar e honestamente irritantes.
Se há uma fobia que o caracteriza é o medo de parar. A
inércia causa-lhe urticária. Mesmo que às vezes possa não saber para onde,
prefere continuar a andar. Ou a correr. O que, quando estamos perdidos em
viagem, por exemplo, não é de todo a melhor ideia. Mas como autor, pelo menos,
parece levá-lo sempre a qualquer lado, ainda que lá fique por pouco tempo.
Neste momento, pelo que sei, tem quatro novas histórias
prestes a ser lançadas: Vil com Xico
Santos (Kingpin Books), Tormenta com
João Sequeira e Milagreiro com vários
ilustradores (ambos pela Polvo), para além do novo número do seu Living Will, com Joana Afonso. Claro
que, para além disto, e apesar de o ouvir constantemente a anunciar que tem de
"reduzir" (como se estivesse a falar de droga), tem vários outros
projectos em curso. Mas eu já nem tento estar a par de tudo o que vai naquela
cabeça. Tentar seria provavelmente um esforço em vão.
No fundo, por mais que isso lhe custe tantas noites mal
dormidas ou que volta e meia maldiga a sua mania de se meter em tudo, eu sei
que de alguma forma ele há-de continuar a criar o seu caminho através das ideias,
por vezes duvidosas, que ele transforma em histórias. Fazendo-o sempre nesta ambiguidade
em que vive; algures entre o ímpeto de sentir que tem algo relevante para dizer
e a constante insegurança que o faz duvidar se alguém quer ouvir.
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