terça-feira, 18 de dezembro de 2018

"Living Will 1-7, a leitura de enfiada" por Mário Miguel de Freitas


Não esperem de mim uma recensão. Muitas já foram feitas, outras estarão por aí no prelo. Sobre Living Will, basta saber que foi publicado pela Ave Rara em 7 fascículos de 16 páginas cada; que foi imaginado e escrito por André Oliveira, com cinco números ilustrados por Joana Afonso e dois por Pedro Serpa, o 4 e o 6; e que narra a história de Will, um velho que perde o seu cão, o seu último elo à vida e gatilho de toda a trama. Os últimos dias de Will e as pontas soltas da vida que este pretende resolver dão o mote para uma obra belíssima sobre decisões e arrependimentos, sobre expectativas e desilusões, sobre pecados fatais e redenções falhadas. Em suma, uma obra belíssima sobre a vida. E André Oliveira escreve com mestria sobre os temas mundanos, como já o comprovou à saciedade em incontáveis álbuns e curtas de BD, caldo ensaístico que o André tem usado e abusado para estalar os seus ossos narrativos e estreitar parcerias com ilustradores de monta e outros que lá chegarão, haja sintonia entre talento e persistência.

Living Will, como qualquer grande obra, é sobre o seu autor e as suas vivências, mas faz-nos sentir igualmente retratados. Quem nunca perdeu o contacto com um grande amigo de outrora? Quantos de nós não têm um Trevor na vida, alguém que perdeu o norte e passou a viver igualmente desfasado dos outros pontos cardeais, incapaz da assumpção de culpas próprias, antes escolhendo indiscriminadamente bodes expiatórios ao seu redor? Sei bem o que isso é. Mas o André tem a capacidade de nos fazer vivenciar experiências que nunca tivemos, porque é cru, é visceral, quando a narrativa o pede. E consegue, porém, ser de uma tremenda subtileza e tirar-nos o tapete, naquele momento em que julgamos que o vamos finalmente apanhar num cliché. Não que eles não existam em Living Will: o que é a vida, o quotidiano, a mera existência, sem uma enxurrada de clichés? E eles também lá estão, mas usados de forma elegante, dentro de uma propósito narrativo sólido.

Living Will deve muito do seu charme ao desenho de Joana Afonso e à sua interpretação das personagens. Mesmo num registo menos dinâmico ou diversificado, longe daquele que marcava o clássico O Baile ou o mais recente Zahna, a expressividade e o traço inconfundível da ilustradora são uma injecção de personalidade nas criações de André Oliveira. Joana transmite emoções como poucos, e desengane-se quem pudesse pensar que o seu estilo cartunesco não poderia servir uma narrativa desta índole. Bem pelo contrário, são os esgares e sorrisos exagerados, as raivas inscritas em sobrancelhas contraídas e em indicadores espetados, e a movimentação caricatural das personagens que tornam Living Will numa obra doce e verdadeiramente humana, algo que um registo pseudo-realista nunca poderia atingir.

Dito isto, Living Will não é uma obra perfeita, longe disso. O arco narrativo do médico Terry soa algo deslocado do mundo aparentemente mais civilizado onde se desenrola a trama. Mas é na vertente artística que as maiores fraquezas e inconsistências se manifestam. O início exuberante de Joana Afonso vai-se diluindo ao longo dos números, como se a demanda de Will se começasse a tornar um fardo para a talentosa desenhadora. Os detalhes tornam-se mais esparsos, a variedade cromática de cada tom caminha para blocos mais monocórdicos, e as próprias personagens perdem elasticidade, repetindo-se em planos por demais rígidos. A chegada de Pedro Serpa, necessária à manutenção mínima da periodicidade de série, introduz um corpo estranho. Narrador visual de primeiríssima craveira, Serpa vê-se ele próprio numa bicuda encruzilhada, num equilíbrio ténue entre o seu estilo próprio e a tentativa de manter a identidade visual que Joana Afonso tão bem conferiu à série. O resultado, longe de ser brilhante, consegue o objectivo mínimo de manter o embalo da série, sustentada pela visão de André Oliveira e pela riqueza da sua escrita. Ora escorreita e coloquial, ora poética e literária. A legendagem, com balões desenhados pelos dois ilustradores, é orgânica mas inconsistente, com as lacunas normais de uma legendagem não profissional, uma das grandes pragas da BD portuguesa. Guias excessivamente espessas, posicionamento nem sempre elegante, e uma fonte que tem o seu charme mas a que não escapa o malfadado i serifado.

Uma surpresa, ou talvez não, é a qualidade do texto em Inglês. Bom, muito bom até, pouco ficando a dever à usual destreza com que André Oliveira trata a língua portuguesa. E uma nota a finalizar: não escrevo tudo isto por ser amigo do André. Ele bem sabe a franqueza das nossas conversas, bem conhece o espírito crítico que trocamos. Essa será decerto uma das razões por que ambos evoluimos como autores, como argumentistas. Nem sempre adoramos, ou gostamos sequer, daquilo que o outro faz, até pelas sensibilidades que nem sempre compartilhamos. Mas há sempre respeito e percepção de qualidade. De quem domina as ferramentas, de quem conhece o meio em que trabalha. E o André fá-lo como muito poucos, pela capacidade de espraiar os temas que aborda, do humor corrosivo à ficção histórica, do “slice of life” ao profundamente íntimo.

Mais do que celebrar os 5 anos de publicação ou o formato da dita publicação, Living Will será sobretudo uma obra para ser lida de enfiada. Vorazmente, como as grandes obras devem ser consumidas. E várias vezes. Porque Living Will ficará, para sempre, como um testamento vivo à qualidade da BD, portuguesa ou outra. E assim fecho com um cliché. Porque eles também fazem parte da boa escrita.

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